Entretanto, um projeto desta dimensão, que provocará mudanças tão profundas nas rotinas das empresas brasileiras, precisaria de mais tempo de exploração e cuidados técnicos, tanto por parte do Governo quanto por parte dos empresários.
Sobre o assunto, conversamos com Roberto Dias Duarte, especialista em Tecnologia da Informação, Certificação Digital, Redes Sociais, SPED e Nota Fiscal Eletrônica (NF-e), com mais de 20 anos de experiência em projetos de gestão e tecnologia e mais de 400 palestras em mais de 100 cidades nos 27 estados brasileiros. Seus projetos mais populares são os livros "Big Brother Fiscal" e "Manual de Sobrevivência no Mundo Pós-SPED, tornando-se referência nacional no universo fiscal.
Conheça mais sobre o assunto em uma série de perguntas e respostas que realizamos com Roberto Dias Duarte.
Estão comparando o eSocial com o projeto Nota Fiscal eletrônica (NF-e), por causa do grande impacto e mudança que causará no RH das empresas. O que representa o eSocial no cenário empresarial do Brasil?
Roberto Dias Duarte – Existem similaridades entre o eSocial e a NF-e. Entretanto, elas são mais relacionadas à tecnologia do que aos impactos empresariais. Em ambos os projetos, um evento é transmitido às autoridades por meio de arquivos XML assinados com certificado digital e, portanto, juridicamente válidos e autorizados. Assim, as empresas contam com recibo ou protocolo de autorização eletrônico para comprovar o registro de cada evento. Há diferenças importantes. A mudança decorrente da NF-e gerou impactos, sobretudo na área de faturamento, com reflexos nos departamentos financeiro, contábil, de logística e recebimento de mercadorias. Já o eSocial muda os procedimentos de 100% dos setores empresariais.
Ademais, o projeto da NF-e foi amplamente debatido entre todas as autoridades fazendárias estaduais, através do Encat (Encontro Nacional de Coordenadores e Administradores Tributários Estaduais). Isso levou sua implantação a um cronograma mais coerente com a realidade empresarial brasileira. A NF-e foi instituída em outubro de 2005, pelo Ajuste Sinief 07/05, mas sua obrigatoriedade começou apenas em abril de 2008, um ano após a publicação do ato que definiu o primeiro cronograma, o Protocolo ICMS 10/2007. Mais do que isso, a obrigatoriedade foi estabelecida primeiramente para grandes contribuintes, em uma escala setorial. Os primeiros foram os estabelecimentos envolvidos na cadeia produtiva de combustíveis e cigarros. Ao final de 2013 chegamos a pouco mais de um milhão de empresas obrigadas a emitir NF-e.
Graças ao esforço do Encat, anos antes das primeiras obrigatoriedades os manuais técnicos e operacionais da NF-e já estavam muito evoluídos. Centenas de empresas já emitiam NF-e voluntariamente, testando o modelo. Isso tudo fez da NF-e um projeto, que mesmo enfrentando os desafios da mudança de paradigmas e diversos problemas operacionais, que se tornou um exemplo para o mundo.
Já o eSocial ainda carece de clareza nos manuais técnicos e operacionais. E, o mais impressionante, é que mesmo impactando significativamente os procedimentos de 6 milhões de empreendedores, apresenta um cronograma que inclui todos eles no projeto ainda em 2016(*).
Você acredita que a implantação do eSocial será tão "traumática" quanto foi a implantação da NF-e?
Duarte – O presidente do Tribunal Superior do Trabalho, ministro João Oreste Dalazen, é enfático ao afirmar em artigos que a nossa legislação trabalhista é cheia de lacunas, excessivamente detalhista e confusa, o que "gera insegurança jurídica e, inevitavelmente, descumprimento". Automatizar processos confusos e mal definidos é uma tarefa hercúlea, até mesmo cruel. A maioria absoluta das organizações, incluindo as entidades públicas, não cumpre rigorosamente a legislação trabalhista. Com a implantação do eSocial, teremos as inconformidades trabalhistas e previdenciárias identificáveis e rastreáveis eletronicamente. Ou seja, o rei ficará nu. Ou realizaremos uma simplificação verdadeira na legislação ou teremos todas as organizações reféns da fiscalização. Por isso, enquanto a sociedade civil não se mobiliza, a partir de cada empresa, é fundamental o trabalho de gerenciamento de riscos.
Quais serão as mudanças mais expressivas para as empresas?
Duarte – Em torno de 50% das informações solicitadas são oriundas da área de RH. As demais vêm dos setores financeiro, jurídico, de medicina e segurança do trabalho, contábil, fiscal e outros. Mesmo as informações sobre as quais o RH tem controle são originadas na operação diária da empresa. Por isso, o pessoal de Recursos Humanos depende das demais áreas para cumprir prazos e manter os dados coerentes. Admissões, rescisões, alterações salariais são decididas pelos gestores dos departamentos. Antes de analisar as mudanças, precisamos lembrar que temos pouco mais de 12 mil grandes corporações (responsáveis por 60% da arrecadação tributária), 190 mil empresas sujeitas ao "Lucro Real", cerca de um milhão no "Lucro Presumido" e 5 milhões no Simples.
A quase totalidade dessas empresas tem seus processos contábeis, fiscais e trabalhistas terceirizados em organizações contábeis. Para esses, a mudança será enorme, pois o fluxo de informações precisará de um controle automatizado por sistemas que sequer existem no mercado. As maiores empresas terão dificuldades na padronização dos procedimentos relacionados ao eSocial. Mas, se utilizarem técnicas de gerenciamento de riscos e governança, poderão, inclusive, se fortalecer. Já as pequenas, caso o cronograma e as demandas informacionais prevaleçam como hoje estão definidos, serão muito penalizadas.
Com o que o empresário deve se preocupar agora, antes da obrigatoriedade de uso do eSocial?
Duarte – Antes de agir é preciso entender e planejar. Além do conhecimento técnico sobre o projeto, é fundamental que os líderes e gestores compreendam os impactos do projeto. Sem isso, não adianta nada a empresa adquirir tecnologia de última geração ou estabelecer processos que estejam em conformidade legal. Na prática, as empresas devem promover seminários internos e grupos de trabalho para discutir o tema. Mesmo as pequenas podem participar de eventos coletivos.
Há quem diga que o eSocial apenas fará cumprir o que a legislação já prevê. O que isso implica em desafios e limitações para as empresas?
Duarte – Isso é questionável. Já li artigos de diversos advogados defendendo que o eSocial extrapola a atual legislação. Creio que ainda haverá muita discussão no âmbito jurídico. E mesmo em termos de escopo da informação, há muita gente afirmando que o projeto amplia a quantidade e a qualidade das informações. Alguns acreditam que há mais de 150 novos campos incluídos nos registros. Na realidade esse é um ponto polêmico. Os que alegam que o eSocial apenas substitui obrigações existentes não deixam de ter razão. Mas, por outro lado, muitas das informações classificadas como "novas", na realidade fazem parte de um conjunto de documentos (muitas vezes físicos) que as empresas devem (ou deveriam) arquivar e apresentar somente em caso de fiscalização. Esse é o motivo da confusão. Mas, na prática, documentos que poderiam ser apresentados esporadicamente (apenas quando solicitados), agora devem ser transmitidos quando o evento efetivamente ocorre (é o caso dos atestados médicos). Além disso, há solicitações de dados mercadológicos para a Caixa [Econômica Federal] que realmente são novos, apesar de opcionais.
Existe a necessidade de capacitação de pessoal para que as obrigações do eSocial sejam cumpridas?
Duarte – Sem dúvida. Sem explorar o tema sob as mais diversas óticas (jurídica, fiscal, trabalhista, previdenciária, organizacional e humana) não há como se falar em adequação à realidade da eSocial.
O calendário de implantação do eSocial ainda está confuso e muita gente desacredita dele. No seu ponto de vista, o eSocial entra em vigor na data prevista?
Duarte – A própria coordenação do projeto, por parte da Receita Federal, já afirmou, por diversas vezes, que a velocidade do cronograma foi definida pela Presidência da República. Isso é um fato novo. Pela primeira vez um projeto do SPED assumiu o viés político. Sinceramente, temo pelas consequências dessa inconsequência.
Existem benefícios para o cidadão e para o empresário com o eSocial?
Duarte – Para o cidadão de bem, toda iniciativa que combate a sonegação é benéfica. Para o empresário, em tese o projeto simplificará o cumprimento das obrigações. Mas, na prática, a teoria é outra. O relatório "Doing Business 2013: Regulamentos Inteligentes para Pequenas e Médias Empresas", do Banco Mundial, apresenta um ranking de 185 países, em que o Brasil obteve a posição 130 em "facilidade para fazer negócios". Desempenho fraco para quem se orgulha de estar entre as sete maiores economias do planeta, convenhamos.
Dos 10 indicadores analisados pelo Banco Mundial, o Brasil apresenta o pior desempenho em "pagamento de impostos" (156ª). Esse quesito é resultado da análise de três medidas: Total Tax Rate (mede a carga tributária em relação ao lucro comercial), Tax Payments (reflete o número total de impostos e contribuições pagos); e Time to Comply (mensura as horas por ano necessárias para se preparar, registrar e pagar impostos). Pois foi essa medida que levou nosso país a uma situação tão ruim, com o total de 2.600 horas/ano mensurado para uma empresa-modelo, a fim de que mantivesse sua conformidade tributária e trabalhista.
O mais decepcionante é que desde 2003, quando o "Doing Business" foi criado, as mesmas 2.600 horas/ano permanecem constantes. Quer dizer, mesmo com toda a tecnologia tributária de hoje, manteve-se inalterado o custo de conformidade. Então, é preciso muita cautela com as promessas de simplificação ancoradas apenas na automatização. A própria presidente Dilma [Rousseff] declarou que "não podemos informatizar a burocracia, temos de facilitar". Por outro lado, também não podemos deixar que o remédio mate o paciente. Combater a sonegação é preciso, mas os fins não justificam os meios.
Na sua visão, o eSocial vai reduzir a burocracia para as empresas?
Duarte – Reafirmo: informatizar a burocracia é chique, mas continua a ser burocracia. O país precisa mesmo de um ambiente favorável ao desenvolvimento do empreendedorismo. Pesquisa do instituto Datapopular aponta que 51% da nova classe média quer ter seu próprio negócio. O Brasil precisa gerar mais riqueza, produzir bens de maior valor agregado, crescer nos serviços e no comércio. E, sobretudo inovar no ambiente empresarial. Mas, hoje, praticamente o foco das empresas está voltado para atender ao Governo devido à automação da burocracia. Não sobra tempo nem dinheiro para inovar na gestão, nos produtos e serviços. Quem é que realmente está pensando em melhorar a gestão e criar diferenciais competitivos? A minoria. O discurso que as tecnologias tributárias fornecem dados para os gestores é ilusório.
Esse movimento brasileiro está no sentido contrário ao caminho adotado pelo resto do mundo. A maior parte das economias procuram simplificar o ambiente regulatório. Assim as pequenas empresas investem em tecnologia para melhorar efetivamente sua eficiência. Isso torna esses países mais fortes. Enfim, qualquer estagiário na área de sistemas sabe que antes de automatizar um processo é preciso racionalizá-lo. Caso contrário, haverá alto investimento em tecnologia para fazer aquilo que não precisa ser feito.
Quanto tempo você acredita que leva para um negócio conseguir implantar o eSocial?
Duarte – Ninguém sabe. Não houve nenhum envio de evento ainda, nem em ambientes de testes. Qualquer prazo é mera especulação. Contudo, mudar processos e organizá-los demora anos. Não importa o tamanho da empresa. Mudar tecnologia, procedimentos, conscientizar e educar pessoas é trabalho para anos, e não meses.
Roberto Dias Duarte é administrador de empresas, empresário, professor, autor da série de livros "Big Brother Fiscal" (o primeiro livro sobre SPED no Brasil).
Mentor e conselheiro em empresas do setor de tecnologia da informação. Sócio e presidente do Conselho da NTW Contabilidade, a primeira e maior rede brasileira de franquias contábeis.
Fonte: Roberto Dias Duarte
Nota do Blog: A entrevista com o especialista Roberto Duarte foi realizada por ocasião do V TecnoUpdate promovido pela TecnoSpeed em março de 2014. O cronograma do eSocial já teve vários adiamentos e no atual há a previsão do início em setembro de 2016, mas as informações extraoficiais dão conta de que teremos um novo prazo de start do programa para o próximo ano. Segundo integrantes do Grupo de Trabalho do eSocial ainda há muito o que ajustar para que sejam definidos os leiautes definitivos e com isso a divulgação do cronograma. Até final de agosto/2016 o Comitê Gestor deve apresentar o cronograma e o manual 2.2 do programa. Veremos!
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